domingo, 17 de março de 2013

A Redacção




É estranho como nós, muitas das vezes, não nos conhecemos a nós próprios. A nós mesmos. Melhor do quem para saber de que matéria são feitos os nossos traços característicos senão nós mesmos? Mas não é assim, pelo menos comigo. Há muito que já descobri esta deficiência de me não saber encontrar dentro de mim mesmo. Quem és tu Pedro? Não sei. Isto a propósito da revelação que uma mulher fez sobre mim. Foi entre a joelhada que recebi nas partes baixas da minha ex-mulher aquando do divórcio e o Amor sentido da São quando a conheci passados três anos. Ela chamava-se Graça, uma professora (obrigada professora…) cujo mérito foi só esse, o da revelação de que eu sofria de carência afectiva. De muita. E eu parvo ali a olhar para ela. Quê? Nunca tinha ouvido tal conjugação de palavras.
E a professora.
-Sim menino Pedro, vejo pelos seus cadernos que o menino sofre de carência afectiva, sabe ou não?
E eu de pé na minha secretária sem saber o que dizer, de boca aberta.
-Sabe ou não sabe?
E o meu colega, responde, diz qualquer coisa. E eu sem saber o que dizer. O que é isso de carência afectiva, perguntei-lhe baixinho. E o meu colega, sei lá, mas diz qualquer coisa. Inventa.
-Então menino Pedro, estou à espera.
Tás lixado, só páras no quadro se não dizes nada, insistia o meu colega. Mas que raio de palavras eram aquelas. Ela nunca tinha ensinado aquilo e agora estava a fazer perguntas sobre essa matéria. Mau! Isto assim não é justo. E eu já me estava a ver no quadro preto e a levar grande seca, mas não.
-Bom, sendo assim, parece que o menino vai ter trabalhos para casa. Amanhã vai-me trazer uma redacção sobre o tema “Carência Afectiva”. Ouviu?
-Ouvi sim senhora professora Graça.
E vim para casa magicar no assunto.

Sentei-me no sofá a tentar descobrir como é que a senhora professora Graça tinha chegado a esta conclusão. Assim sem mais nem menos. E logo ali à frente de toda a gente. Sou muito carente, afectivamente falando. Mas notava-se assim tanto? Seria no cabelo, na cara, no modo de andar, no falar, nos olhos? Fui à casa-de-banho olhar-me ao espelho. Não notei nada de especial. Seria o cabelo a ficar branco. Se calhar só podia ser isso. Tive uma infância normal, por isso… Ninguém me batia a não ser a minha irmã mais velha que depois apanhava a dobrar, dos meus pais. Tive Mãe e Pai. Perdão, tive Mãe e um senhor que morava connosco a quem eu chamava de pai. Via-o muitas vezes a ler o jornal e a ver televisão. Não me lembro de ele brincar comigo. O meu avô sim. Brincávamos muito. E dava-me chocolates, mas também porque era rico, tinha muito dinheiro. O meu pai não podia, era pobre. Por isso não me podia dar chocolates. O meu avô, quando não ia com ele ao café ou porque não me apetecia ou se estava a chover muito ou por qualquer outra razão, trazia-me quase sempre um guarda-chuva de chocolate da “Regina” e vinha pô-lo na minha mezinha de cabeceira. Eu ficava todo contente. Deixava-o sair do quarto e acendia a luz para ver o chocolate. Mas o meu pai levava-me todos os domingos de manhã à baixa ver as montras das lojas de brinquedos, antes de ir para a Brasileira estar com os amigos. Não me comprava nada porque estavam fechadas mas eu via as últimas novidades da indústria de brinquedos e já ficava feliz. Ele não me levava à baixa. Eu é que ia com ele, que é diferente. Não era como o meu avô que me levava com ele ao café ao sábado à noite. O meu pai não. Ele não me dizia, vens Pedro? Ou, já estás pronto? Ou, vamos embora? Não, ele vestia-se, arranjava-se tomava o pequeno-almoço e depois saía de casa. E eu se queria ir com ele tinha de me vestir e tomar o pequeno-almoço logo que ele se levantava para depois ir para ao pé da porta esperar que ele saísse para ir com ele. Porque se eu por acaso estivesse na casa-de-banho a arranjar-me quando o meu pai fosse a sair. Saía e prontos. Xau Pedro. Ficas em casa que é um mimo. E depois eu nem tinha lata de ir atrás dele e dizer-lhe ó pai espere um bocadinho por mim. Não. Resignava-me e ficava em casa a vê-lo descer a rua. Era assim o meu pai. Descobri mais tarde que também era um carente afectivo. O pai dele morreu muito novo. Se calhar pegou-me. É isso, foi isso de certeza. Hereditário, acho que é assim que se diz. O meu avô não, não tinha carências de espécie alguma, nem de dinheiro nem de mulheres. Na fábrica onde trabalhava eram dezenas delas. E ele mandava nelas, era o gerente. Por isso o meu avô não podia sofrer de carências. Muito menos afectiva, tinha tanto afecto que me dava a mim. Mas a Graça tinha razão, e eu nos meus quarenta anos sem nunca ter descoberto nada disso. As mulheres são mesmo espertas. E agora o que eu havia de fazer? Para além da redacção para a professora? Ir ao médico de família? Duvido que a Dra. Cristina me soubesse tratar. Muito menos o meu dentista. O Dr. Couto. Era muito inteligente. No consultório tinha uma quantidade enorme de livros muito grossos. Enciclopédias, parece. Devia saber coisas incríveis. E eu sempre achei que aquilo que ele me fazia na boca, quando eu estava sentado naquelas cadeiras manhosas, comparado com o que ele deveria saber era nada. Uma brincadeira. Arrancar um dente ou fazer uma limpeza devia ser canja. Coisas bem mais difíceis deveria ele saber fazer. Tenho quase a certeza. Aquilo era muita folha que ele de certeza já decorara, sobre coisas muito difíceis, tenho a certeza. E eu, que para fazer uma simples redacção sobre isso de carência afectiva, me via grego. Mas depois de sair da casa-de-banho fui descobrindo aos poucos sinais que me indicaram que sim só podia ser um tipo carente. Às vezes chorava no cinema. Se estava sozinho esperava que toda a gente saísse da sala para eu depois poder sair com aquela cara de homem sério e firme ou então se estava com as pequenas, para elas não me verem carente, e me chamarem de menina, eu antecipava-me do FIM e dizia à São que tinha de ir à casa de banho e pirava-me antes de toda a gente e quando fossem ter comigo já eu estava sorridente e feliz. Já de pequenino, estou a ver agora, era carente. Isto porque um dia a criada que me veio pôr na cama insistia para eu fechar os olhos e dormir mas eu teimava que não e ela a insistir e eu disse-lhe que só adormecia se me der uma coxa das suas. Era a minha chupeta para aquela noite. Ou isso ou nada. Agora vejo, típico de um tipo carente, Pedro. Vês como a Graça tinha razão e tu a saíres de casa dela a resmungar por isto e por aquilo só porque ela te disse aquilo. E queres saber mais, Pedro? Outro sinal? Quando foi do teu divórcio ficas-te completamente KO. E depois andavas aflito para arranjar uma namorada. Se não fosses carente Pedro tinhas curtido à grande e à francesa uma data de mulheres diferentes. Mas não, querias uma deitadinha todas as noites à tua beira, para te contar uma história, para adormecer, fazer festinhas, miminhos, levar-te a passear, comer contigo à mesa. Aí esta outra prova de carência afectiva, vez? Sim, estava a ver, finalmente. Precisas de mais? Não. Não. Sou mesmo assim. E tu achas que pelo facto de dar muitos mimos à minha filha lhe posso estar a transmitir alguma insegurança, ela perceber que eu sou carente, e também vir a sofrer de carência afectiva? Achas? Não sei Pedro. Não sei Pedro.
A redacção acabei por fazê-la. Entreguei à professora no outro dia. Tive uma nega. Foi a única nega que tive com uma mulher…
 

FIM

(Sinceramente, ao reler o texto, não entendo como é que isto saiu da minha cabeça.)

3 comentários:

  1. Eu gostei!
    E acho que deve continuar a dar muitos mimos à sua filha ;)

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  2. Por vezes não sei se é oportuno ou não este tipo de textos mais intimistas...de qualquer modo assumo perfeitamente esta deficiência. E sim, dou talvez até demais, muitos mimos à minha filha.De certo modo funciona como aquela história de quem é que estar a dar a quem, quando se dá a esmola a um pobre, neste caso afecto.
    Obrigada.

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  3. Gostei muito, sobretudo da pergunto "Quem és tu Pedro?"
    Continue a escrever deste seu jeito!

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