terça-feira, 14 de maio de 2013

Dúvidas


Ontem comprei uma camisa que, mais tarde, verifiquei ser "made in Bangladesh". A primeira coisa que me veio à cabeça: terá sido fabricada por algum dos que morreram na derrocada daquele prédio que matou mil pessoas?

Não me buliu o coração nem um bocadinho e isso deixou-me um pouco incomodado. Se calhar não sou tão solidário como imaginava, não me preocupo com a espécie humana com o desvelo que se impõe a uma boa alma. Comprei a camisa porque era barata. Fiquei com ela porque o "made in Bangladesh" está escondido na etiqueta e não revela ao mundo essa minha nódoa moral?

Na verdade, o que se passou foi que quando reparei no pormenor da origem da camisa já estava no balcão, a pagar. Já tinha uma factura e digitara os números do meu cartão de débito na maquineta. Não me apeteceu dizer à empregada (que tinha cara de se preocupar mais com revistas cor-de-rosa do que com jornais "sérios") que não queria aquela camisa porque... porquê? Sou mais preguiçoso do que solidário.



Quando saí da loja tive uma iluminação! Talvez aquela camisa tivesse sido fabricada por Reshma, a rapariga que sobreviveu 17 dias sob os escombros do prédio que vitimou outras mil pessoas, entre colegas e nem tanto. Fiquei mais sossegado. Decerto que trazia no saco uma peça saída das mãos da rapariga protegida por Deus. É assim que os fracos se convencem que são mais ou menos fortes?

Leio que o salário médio de um operário no Bangladesh é de 29 euros (
ver aqui). A camisa custou 12. Ou seja, quantas camisas daquelas faz um operário por dia já que duas e uns trocos pagam o seu ordenado mensal? É melhor nem pensar nisso, comprei uma coisa daquelas, para onde vai o dinheiro que paguei?

A tragédia fez com que o governo decidisse rever as condições laborais e a tabela salarial destes quase-escravos. As empresas que exploram o trabalho destas pessoas fazem valer o velho ditado "casa roubada, trancas à porta" e anunciam que irão investir nas condições de segurança das fábricas. Pouco perderão, igual a nada.

Se a morte de mil operários teve o condão de por em movimento todas estas acções o que aconteceria se tivessem morrido dois mil? Ou três mil... quantas pessoas precisam de morrer para que se faça justiça social? Quantas pessoas precisam de morrer para que o capitalismo selvagem fique manso, nem que seja por breves momentos?

4 comentários:

  1. É um problema de consciência que só um ser bem formado aflora. Contudo isto é tudo muito complexo e trata-se de um Continente e explorar outro, porque as estruturas sociais a isso levam. Não está na nossa mão resolver essas grandes injustiças sociais, mas o pensar nelas e reflectir virá a ajudar a criar um outro caminho de entendimento entre as pessoas. O que descreve é um facto que só uma pequena parte de seres humanos presta atenção mas que aflige muitos milhares de milhões.

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  2. Uma interessante reflexão, em tempos que não só o capitalismo selvagem está no seu pior!

    Estamos numa selva em que descaradamente o dinheiro comanda tudo!

    Estamos.........e os que estão a controlar o dinheiro estão felizes e contentes por assim o fazerem.......


    Tempos dificeis

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  3. quantas pessoas precisam morrer para se fazer a coisa certa?
    É o «antes» das coisas acontecerem que deve ser uma prioridade para os Governos. Prevenir, prevenir.
    O lucro e a finança governam o mundo. As pessoas são números e estatísticas.
    É preciso referir nomes como Reschma, mas sobretudo, referir os nomes de quem não teve a sua sorte.
    Boa reflexão, Silvares! É preguiçoso, solidário e consciente!!! abraço :)

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  4. Grato pelas vossas palavras. É reconfortante saber que não estamos sós embora muitas vezes possamos ter essa sensação.

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