segunda-feira, 9 de setembro de 2013

os outros números

Não me deixo embalar com a abertura dos noticiários sobre a leitura dos recentes números da economia portuguesa, a qual interrompeu o ciclo recessivo patenteado nos últimos dois anos, baixando tenuemente o número de desempregados (a que ajudou a percentagem em crescendo de trabalhadores não remunerados, isto é, de “indivíduos que exercem uma atividade na empresa/instituição e que, por não estarem vinculados por um contrato de trabalho, sujeito ou não a forma escrita, não recebem uma remuneração regular”, segundo definição do Instituto Nacional de Estatística), aumentando as exportações e os carros vendidos, etc.
Na verdade, eu sou daqueles que pensam que todo o programa de Passos Coelho e sua equipa passava, invariavelmente, por uma efetiva alteração do paradigma socioeconómico, o qual se encontrava, unívoca e estafadamente, ligado a uma redução da despesa do Estado. Por conseguinte, não se afigura necessário a proclamação insidiosa da aplicação do documento da Troika, assinado há dois anos, pois este, quando convém, é alterado sem pruridos de grande monta. Veja-se, por exemplo, o caso da educação.
Há, com efeito, uma comutação silenciosa em curso, a qual não passa, absolutamente, pela qualidade do ensino. É claro que o ministro Crato pode afirmar o contrário, que tudo passa para conferir à escola pública uma maior projeção qualitativa, mas o que resulta das suas afirmações é pura falsidade política e até intelectual. Nuno Crato sabe muito bem a matéria-prima que tem à frente: uma classe amorfa e assustada e sindicatos levianos, cada vez mais ligados a uma realidade que não é a sua. Não admira, por isso, que os cortes neste ministério estejam, orgulhosamente, mais para além do que era preconizado pelo memorando de há dois anos.
Esta ideia tristemente prodigiosa de permitir ao privado entrar, sob o falseado signo de uma liberdade de escolha, por parte dos encarregados de educação, na escola pública é um verdadeiro retrocesso no ensino, em Portugal. E é-o porque estamos perante duas realidades educativas distintas, uma de cariz obrigacionista e outra mercantilista, embora esta última esteja escudada na diáfana mas sempre oportuna capa protecionista do Estado. Do mesmo modo, as escolas privadas não vão querer, naturalmente, entrar num quadro educativo que tem como base os princípios republicanos do livre acesso de todos à educação. De todos, sem exceção. É um pouco como o resultado das parcerias público-privadas que nos têm ajudado na nossa paulatina imersão financeira: privatização dos lucros; estatização dos prejuízos. Até porque, sendo o ensino particular e cooperativo parte integrante da rede escolar nacional, é regido por legislação e estatuto próprios, tendo em conta a Lei de Bases do Sistema Educativo. Daí que não entenda como é que o estatuto próprio de algumas escolas privadas – o qual pode passar, por exemplo, por uma matriz católica – se possa enquadrar no financiamento direto por parte do Estado que – note-se neste exemplo trazido aqui à colação – é laico. Porém, o que paira na cabeça dos governantes desagua invariavelmente na fria aritmética. Adrede, uma coisa se afigura certa: a escola pública não vai necessitar de alguns milhares de professores, pois estes migrarão, naturalmente, para o outro lado, cada vez mais oportunista, do ensino privado. E isso é, sem dúvida, uma excelente notícia para o ministro Nuno Crato.
Entretanto, o ensino superior registou, este ano, um decréscimo de alunos caloiros, para valores do princípio do século. A este propósito, o retrocesso não é, obviamente, contabilístico. Os números representam, fundamentalmente, um retrato social.
Lamentavelmente, há quem teime, “sem ironias e cansaços”, apelidar isto de reforma do ensino.

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