terça-feira, 10 de junho de 2014

ANTIFASCISTA PRECOCE

Todos os anos, com o aproximar do 10 de Junho, entristeço por não ser agraciado com uma comenda. Confesso, que por uma questão de modéstia, nunca divulguei o meu passado antifascista. Comecei aos doze anos em plena campanha presidencial entre Américo Tomás e Humberto Delgado. Deram-me a missão de colar, com cuspo, uns pequenos selos já com cola com a foto do General Sem Medo nos olhos dos cartazes do Almirante afecto ao regime fascista espalhados pela cidade do Porto. Do Liceu Alexandre Herculano até casa, esgotava a saliva e os selos. Mais espigadote e acompanhado duns amigos, em certas datas e ao fim da tarde, lá íamos para a baixa. Rua Sá da Bandeira, Praça da Liberdade e Av. dos Aliados, desafiar a polícia de choque armada de espingarda para darem umas coronhadas a quem não se afastasse. Tudo isto à mistura dumas  correrias à frente dos carros com canhões de água com azul metileno  que nos estragava a fatiota. Não sei se a Pide era conhecedora destas minhas façanhas, o certo é que quando chegou a hora de ser mobilizado para o Ultramar, calhou-me o local para onde enviavam alguns deportados políticos, a longínqua Ilha de Timor. A viagem de ida durou cerca de 50 dias, três companhias (mais de seiscentos militares) enfiados nos porões do navio cargueiro “Índia”, sem muda de roupa da cama, os pratos e talheres lavados com água do mar por falta de água potável.  
Hoje, exige-se, e muito bem, condições condignas para transporte de animais. Por mera coincidência, na mesma altura, Mário Soares seria deportado para S. Tomé mas teve mais sorte pois fez uma viagem de algumas horas de avião, guardado por três agentes e conseguiu trabalhar como advogado dos exploradores/fascistas  da CUF, anos mais tarde presos e saneados. Mas foi em Timor, que pratiquei a missão mais arriscada como antifascista. Um dia vejo a atravessar a rua um agente da Pide que era mesmo em frente ao café em que parávamos. Por instinto e com a adrenalina a subir e sabendo a mesa habitual que ele ocupava, fiz uso do meu vasto conhecimento em envenenamentos aprendidos nos filmes dos Bórgia e não hesito: despejo o saleiro no açucareiro provocando-lhe um ataque de fúria, impropérios ao proprietário, empregados e pela certa uma subida da tensão arterial. Não sei se haverá muitos antifascistas com este currículo, mas sei  que no outro lado da barricada houve um Marechal muito da esquerda que chegou a Presidente da República e que tinha recebido da Pide o crachá de ouro por serviços prestados àquela tenebrosa policia. Desconheço, mas será fácil imaginar que outros oficiais de mais baixa patente, agora muito revolucionários e democratas, tenham subido ao pódio com crachás em prata e em bronze. Pelo exposto, mereço ou não uma condecoração? Comendador Morais, que tal? Jorge Morais  

Publicado no jornal PÚBLICO de 10  Junho 2014

O sublinhado foi cortado talvez por falta de espaço.     


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