quarta-feira, 4 de junho de 2014

Espelho para o vazio

*Cristiane Lisita


   
         Certa vez, Cecília Meireles escreveu: “eu não tinha esse rosto de hoje (...) eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: em que espelho ficou perdida a minha face?” Em que espelho se perderam nossas faces? Estamos vivendo a “era do vazio”, ou do espelho para o nada, na qual os mass media, e, sobretudo as redes sociais, nos revelam uma sociedade corrompida pela vaidade, pelo fugaz. Pessoas descartáveis, que precisam apenas manter sua autoestima, moldando-se a determinados padrões de conduta, aparência, circunstâncias para serem enganadoramente felizes... A ditadura da felicidade transforma o sentimento em algo tangível, exterior, de fácil consumo, nos permite fugir das angústias e mostrar a vida janela afora. Nessa sociedade cujo espelho reflete o vazio existencial é almejada a admiração, e até a inveja. Ser invejado é fundamental para ter certeza de que o ego está sendo massageado. Já dizia Sosígenes Costa acerca do pavão vermelho: “é o próprio doge a se mirar no espelho”.


Nos meus tempos de mocidade vestir jeans era confortável, despojado. Atualmente tem que marcar a silhueta, mal cabe nas pernas. James Dean demonstrava que era melhor ser triste, pois mais triste ainda era não sentir nada. Preferível uma juventude chamada de transviada, despida de preconceitos, do que ter um comportamento resignado, vicioso, abarrotado de artifícios que desviam dos objetivos, da substância interior. Odeio a tal calça skinny.  Ela não se adapta ao corpo, ao contrário, o corpo deve se adaptar à calça. As redes sociais alimentam o espelho de claridade, pois sem luz a projeção não aparece. O remetente tornou-se seu principal destinatário, não importa os conteúdos que vai emitir, não interessa uma imagem real, só necessita da luz para refletir o seu próprio ego, já que não consegue se libertar dele.  E esses skinnyanos não medem esforços para entrar na calça, para ver-se no espelho das redes sociais. Para a alegria deles.
                                                                                                                  

O espelho de ontem transcendia a sua superfície polida, na qual se refletia a luz, ou as imagens, para deixar transparecer o cerne de toda uma história, ou como nos víamos, com mais honestidade, caráter ilibado. A síndrome do espelho moderno é o da Madrasta da Branca de Neve: “espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?” Indivíduos que se pensam imortais, desconhecem o caminhar pelo essencial, pela sensibilidade, volvidos para a azáfama insaciável de se projetar no narcisismo, no supérfluo: dinheiro, poder, músculos... O engodo a si mesmo. Um espelho para o nada, no qual os valores foram arremessados para outro plano, a honra- que não vale mais que uma cesta básica,  o respeito. Mas tem gente que não sabe o que é isso, nunca vai sentir falta da integridade da imagem no espelho.


*Cristiane Lisita


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