terça-feira, 16 de dezembro de 2014

CONTO DE NATAL PARA UM SEM ABRIGO



Fome. Não é de pão, se bem esquecidos de uma refeição decente.

Perdeu-se o apetite pela comida porque ela anda arredia. Faz-se um esforço de Hércules no auto controlo para manter a biologia no seu lugar: obrigatoriedade de viver porque não há outras oportunidades mais interessantes.

Não é a fome que revolve os interiores, é a escassez de outros petiscos a cujo preço não se chega.

Esses acepipes são palavras, que têm cores fortes, sons agudos, ingredientes de conceitos complexos e muito sérios.

Revisite-se o cardápio:

Estima. Haverá fatiota mais galante que esta? Calcorrear a calçada trajados de limpo? Lustrosos? Sorrir à cara cheia e estar sempre a tirar o chapéu em mímicas de pantomina aos transeuntes que passam incrédulos pela calçada? Deixar rasto, a espuma dos dias que passam. É isso, vincar o caminho.

Útil. Todos os parceiros sem deixar de fora quem está sentado nas margens dos passeios. Dar a mão, receber outra, usar o seu impulso para o acontecimento de qualquer coisa. A somar as partes, fazer algo.

Energia. Os dias de inanição gastam, esbracejando sem glória, pelo elementar, pelo básico, pelo mínimo, vão-se as forças no essencial.

Tolerante. Perde-se a vontade de olhar para as pessoas apaixonadamente, encontra-se defeitos em tudo, nada se desculpa. É o pior sintoma desta estirpe de anorexia mórbida.

Não se é pobre por ter pouco dinheiro, mas porque baixa a febre da impotência, que descalcifica os ossos, ataca os músculos, conquista o corpo para a desistência.

Fica-se coitadinho, exposto a compaixões e penas, dos falsos rosários de prata a chocalharem no interstício de seios bem nutridos e vicejantes.

Quer-se dignidade – tesouro dos tesouros - porque entre outras razões que vêm à cabeça, já se pagaram os duodécimos desse manjar.

Oportunidade. Surripiada para os bolsos de outros casacos.

Esperança. É como a fome: não se morre pela sua falta, mas fica-se mais magro porque não alimenta absolutamente nada. Não tem calorias.

Vergonha. De vocês, abutres diletantes. E por nós, pelos desabafos, regurgitações da alma que não levam a lado nenhum.

Coragem. Para ajeitar os vossos colarinhos cheios de goma.

Amanhã. Se bater à porta será um dia como todos os outros, desinteressante.

3 comentários:

  1. Parabéns caro Luís, belo texto a fazer-nos reflectir sobre esta data natalícia e a ignorância a que são deixados todos os que não têm razão para festejar o Natal. Um verdadeiro manifesto contra o egoísmo, a ganância dos abutres que governam esta sociedade apodrecida. Bem haja caro Luís! Continue a escrever o que lhe vai na alma precisamos de pessoas com o amigo.

    ResponderEliminar
  2. Para mim o mais aviltante são os programas de comida gourmet serem apresentados em horas de maior audiência televisiva, enquanto os 'sem eira nem beira' chafurdam nos caixotes de lixo em busca de um naco de nada.

    ResponderEliminar
  3. Obrigado.
    Arlindo peço desculpa só agora responder agradecendo as suas palavras, mas só agora li o seu simpático comentário.

    ResponderEliminar

Caro(a) leitor(a), o seu comentário é sempre muito bem-vindo, desde que o faça sem recorrer a insultos e/ou a ameaças. Não diga aos outros o que não gostaria que lhe dissessem. Faça comentários construtivos e merecedores de publicação. E não se esconda atrás do anonimato. Obrigado.

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.