domingo, 8 de março de 2015

O elo perdido





O elo perdido

*Cristiane Lisita


                         Maria Clara se olha no espelho e não se reconhece. Sabe ela da lida do tempo. Não se olvida que, em algum lugar ou momento, permitiu escapar o elo entre o que foi e o que hoje é. Quantos anos teriam se passado desde a última vez que enxergou a si própria num vestido azul, tecido de sonhos, sem rasgos, sem rugas? Quantos anos teriam se passado até que pudesse entender o arfar da vida a perdurar na memória? E o reflexo do espelho a denunciar, tantas vezes, o que não se quer ver.

                        A imagem se esvai, Maria Clara, como a água cristalina da chuva despetalada no chão de um instante de tamanho albor. Virão como um reflexo nacarado aqueles dias ensolarados em certo descampado, sob a sorte de alegrias mil, ao suspiro dos jasmins e das manhãs. Debruçarão sobre as aurículas dos muros verdejantes musgos encortinando o afeto tido e também o não conhecido. A imagem se esvai, Maria Clara, como o raio que lampeja breve sob a espinha da existência. Subirão à tona toda a magia e plenitude havida, do folhear do livro recebido, da mão espalmada em outra mão, do candeeiro que esculpia sombras, e não permitia sentir a ausência.

                        Compreende o que mais me sensibiliza, Maria Clara? Crer nas giestas que nunca hão de fenecer. Uma brisa qualquer, numa semana qualquer arrebatará dos seus galhos um amarelo fulgente a tingir a relva, e aqueles finos sentimentos se alçarão no fundo da alma, como borboletas.

          Compreendes o que mais me sensibiliza? Perceber que ainda podes olhar no espelho e encontrar uma imagem.  Imagem que se dissipa, Maria Clara, ainda que no mar iracundo das aflições, das sensações personalíssimas, da noite quase sem termo, do edito condenatório de algo não vivido.  Cantava em versos Mário Quintana: “Esse estranho que mora no espelho (e é tão mais velho do que eu) olha-se de um jeito de quem procura adivinhar quem sou”. Maria Clara, tu sabes quem és. Quando mirares a ti mesma, não tenhas medo.



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