quarta-feira, 22 de abril de 2015

Anti-vacinação e homeopatia: o que falta referir

Vive-se, neste momento, uma intensa polémica à volta das (apelidadas) "terapias não convencionais", sobretudo a homeopatia, e da temática da "anti-vacinação", todas estas o produto de uma intensa querela que tem contraposto o modelo clínico/materialista ao novo - e tão propugnado - modelo da "Nova Era", cambiante de uma "nova ordem" na forma de ver e interpretar as questões da Saúde. Na verdade, há várias questões complexas a ter em conta no domínio da polémica citada, muitas delas insuficientemente explanadas, injustamente elididas.
Em grande medida, é impossível discutir o tema em causa sem recrutar toda uma dimensão epistemológica, complexa e multivariada, que parece muitas vezes ver-se omitida. Vive-se, fortemente, uma dualidade, que é, na realidade, o binómio dominante do tempo Humano. Essa dualidade contrapõe o materialismo ao espiritualismo, o cientificismo ao dogmatismo (no "bom" sentido do termo), o modernismo ao pós-modernismo, o realismo ao idealismo e o positivismo à dialéctica. Em tempos o dogmatismo prosperou, mas o Renascimento e o Iluminismo vieram cientificar, categorizar, organizar cognitivamente, o terreno do corpo-mente, gerando a visão de uma "Clínica" (Foucault), de mote analítico, mais tarde alvo de crítica pelos que se dizem "holísticos". Num tempo em que o materialismo ainda é preponderante, uma nova forma de Renascimento - o Renascimento pós-moderno, a "Nova Era" espiritualista - parece vir responder a prementes necessidades humanas e afectivas, necessidades muitas vezes insuficientemente atendidas pelo profissional de saúde "científico". E, assim, mesmo dentro dos campos da medicina, enfermagem e fisioterapia, duas tendências dominantes parecem contrapor-se com vigor (apesar de, a meu ver, não serem mutuamente exclusivas): a "medicina baseada na evidência", centrada fortemente em estudos do tipo "estatístico-probabilístico", e a Saúde Holística, baseada num modelo essencialmente casuístico e, quiçá, pós-moderno (fenomenológico e interpretativo).
Acontece que, nos domínios da Espiritualidade mais antiga, e fazendo uso de Platão, é possível ater a possibilidade de existir um nível de "Razão" que transpõe o domínio do que actualmente se entende por "ciência". Na verdade, o termo Scientia advém da "Epistémi" platónica, que, segundo «A República», inclui um nível de "Dianóia" (semelhável ao que a ciência moderna entende enquanto "ciência", filha dilecta do liberalismo) e um nível (superior) de "Noésis", meta-racional, dificilmente redutível ao "analítico" e ao modernamente científico, e só concebível no formato de uma hermenêutica vívida, gnóstica e dialéctica. Assim, nos termos da filosofia Idealista/Espiritualista, é possível conceber a existência de um nível de Razão só atingível pelo instrumento dialéctico e argumentativo. Ora, acontece que, supostamente, muitas das terapias "não convencionais" lidam com forças que transcendem o "material" e o "comensurável"/"analítico". Para esses terapeutas, tratam-se de forças meta-racionais, energias de um nível psíquico e, mais, espiritual, só concebíveis em termos de um entendimento profundo, singular, muitas vezes irredutível à linguagem da ciência moderna e aos estudos já citados. No entanto, visto não haver forma de "falsificar" (para utilizar o termo de Popper) ou "reduzir" muitos dos (supostos) efeitos destas terapias, na perspectiva da ciência moderna esta suposta Razão é tão-só uma forma disfarçada de crença, se não uma maneira subtil de enganar, de intrujar. Os proponentes da ciência moderna têm a sua razão, porque a retórica permite muito e pode levar a tomar por racional e verdadeiro o que não o é verdadeiramente (o que significa que a suposta "Noésis" obtida não o chegou nunca a ser). Os perigos do que Popper apelidava de "relativismo dogmático" (e o filósofo "tomou de ponta" a própria psicanálise) são inúmeros, porque a retórica em questão permite justificar tudo, o facto de algo resultar, o facto de algo não resultar e o "assim-assim".
Não obstante, aquele nível de Razão é (pré)aceitável no ponto de vista de alguma Filosofia, menos aceitável são os quase inexistentes critérios que permitam discriminar o "verdadeiramente racional" do "falso racional".
Muitas das terapias "não convencionais" são baseadas em princípios "idealistas", supostamente racionais, que muitas pessoas aceitam aprioristicamente, no que os materialistas associariam a um processo de "aceitação acrítica", movida pelo sentimento e pela crença. E a irredutibilidade destas terapias contribui para criar um fosso entre os dois paradigmas difícil de resolver, porque o que respeita aos Princípios de muitas destas terapias não é aparentemente do foro instrumental e analítico dos críticos materialistas. E a verdade é que, supostamente, estas terapias operam a um nível espiritual e "trans-corpóreo" (metafísico) que, para os materialistas, é tão-só corpo e nada mais. O que também nos poderia levar a pensar que estas terapias não actuam a um nível e num prazo consistente com o que as pessoas efectivamente desejam. O que querem mesmo as pessoas? A saúde do corpo, o bem-estar, ou a libertação e a transcendência?... Porque a transcendência, no seu verdadeiro sentido, já está para além da "pessoa" em si mesma, tal como o Espírito, que já não respeita tanto à pessoa no sentido individual, emocional e afectivo. E, no entanto, as pessoas procuram as terapias, movidas pela urgência do "bem-estar", que, ainda assim, é epifenómeno da modernidade, a mesma a que aquelas terapias pretendem contrapor.
E, dentro do mesmo espírito de crítica à ciência moderna, de transposição do modelo dominante, surgem, quase sempre dentro dos contextos "naturalistas" e "espiritualistas", as contraposições aos fármacos, às vacinas, a tudo o que o mesmo Espiritualismo propõe ser uma grande máquina de destruição do corpo (ou será da alma?). Acrescem-lhe as críticas ao modo de efectuação de estudos, incluindo a fraude científica, a limitação dos estudos com base em médias, os interesses dos próprios cientistas e das indústrias (e a forma como os interesses, as profecias auto-confirmatórias, mexem com os resultados obtidos, fantasma do pós-modernismo crítico). E o mais irónico é que as terapias "não convencionais" começam também já a ter os seus estudos publicados, no mesmo modelo que o Espiritualismo critica. Mas os materialistas preferem muitas vezes ignorar esses estudos, ou, no mínimo, apontar-lhes as limitações. São movidos pelo preconceito, pelas suas próprias crenças? Eles advogam que não, que a ciência é feita de "provas" e não de preconceitos. E, assim, o que os "terapeutas" acusam nos cientistas é precisamente o mesmo que os cientistas acusam nos "terapeutas". E o esforço de conciliação, de síntese honesta, acaba por ser reduzido ao pré-juízo, à incomensurabilidade de paradigmas (nos termos de Kuhn).
No fim, restam os restolhos de uma limitada síntese de saberes, pois que as pessoas preferem adoptar posições extremas, quando a verdade é que nem o paradigma "espiritualista" é, de facto, o que muitos entendem enquanto tal, nem o modelo materialista é assim tão infalível; e do mesmo modo fica a faltar a aclaração de conteúdos epistemológicos. Enquanto fisioterapeuta que sou, posso dizer que, mesmo dentro da Fisioterapia, se criam condições para grandes querelas epistemológicas, infelizmente sem que os terapeutas possuam preparação teorética para tal (o que leva a que os mesmos se agarrem também de forma radical a um daqueles modelos). O fundamentalismo, seja espiritualista, seja materialista, tem os resultados visíveis. Grandes "guerras" se prevêem, e o paciente sentir-se-á muitas vezes divido pelos modelos preferenciais dos próprios terapeutas. Eu mesmo me divido entre os dois modelos, e nem sei se falo enquanto fisioterapeuta ou enquanto ensaísta.

Luís Coelho, fisioterapeuta e escritor

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