domingo, 26 de julho de 2015

POEMAS DE DAVID MOURÃO-FERREIRA

(Poesia de David Mourão-Ferreira)

DO TEMPO AO CORAÇÃO  

Do cântico de amor gerado na Suméria
Ao grande “strip-tease”a que se entrega Europa
Da nuca de Afrodite aos artelhos de Artémis
Da lascívia da cabra à lascívia da cobra

Do sabor a limão que há também no remorso
Ao riso da romã que vem no solstício
Sobrevoando à noite o século dezoito
Interrogando a cor da cada suicídio

De perto de Heidelberga ao porto de Antuérpia
Da sagração de Sade à sonoterapia
De uma rosa a uma cruz  De uma cruz a uma ténia
Do secreto Neptuno à caça submarina

Das rugas de um pescoço em redor dos quarenta
ao braço que tão liso aparenta catorze
De uma igreja barroca a um remo  uma rena
Da âncora ao farol no alto de uma torre

Da mais velha invenção à mais nova tortura
Do tempo ao coração  Do Boeing à quadriga
De não te pedir muito  apenas que não fujas
a sentir-te de mais no céu da minha vida

De um jardim de Munique onde nada se passa
como o Nymphenburg onde tudo é possível
à brisa que segrega uma espécie de Arcádia
à onda que traslada um verso de Vergílio

De milhões e milhões que rebentam com fome
ao dom do caviar para abrir o apetite
Do canto gregoriano à música electrónica
Dos berros da oração ao silêncio de um grito

De tanto a muito mais  De tudo a quase nada
Só não sei que tecido oscila entre os extremos
Se apenas o amor  Se o vulto da amada
Se trevas  Se uma luz  Se o tempo em que vivemos

RETRATO DE RAPARIGA
Muito hirta  de pé  no patamar do sono
Contornando sem pressa a curva de uma artéria
Por mais ocasional que fosse o nosso encontro
dava-me a entender que estava à minha espera
Com um livro na mão  com um lenço ao pescoço
uma expressão cansada   a palidez inquieta
de quem andasse ao vento ou trouxesse no rosto
em vez de pó de arroz um pó de biblioteca
surgia de repente onde sempre estivera
em Zurique  em Paris  em Liège  em Colónia
Por único endereço uma carreira aérea
Mas não sei se era louca  ou apenas mitómana
Onde quer que eu a visse uma coisa era certa
Numa rua  num bar  num museu  numa doca
dava-me a entender que estava à minha espera
dava-me a entender que se chamava Europa

Nota – Estes poemas foram publicados em 1966, numa edição com o título
DO TEMPO AO CORAÇÃO, colecção Poesia e Verdade, de Guimarães Editores.
Transcritos na forma em que se encontram no opúsculo.

Amândio G. Martins






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