quarta-feira, 12 de agosto de 2015

FOGO

FOGO
Os fogos das últimas semanas obrigam-nos a reflectir sobre as nossas próprias emoções. Horror, medo, queixa e curiosidade mórbida ou artística – segundo o conceito kantiano do “belo-horrível” – serão os sentimentos dominantes. Horror, medo e curiosidade não necessitam de explicação; mas já a merecem as nossas queixas, lançadas em tantas direcções, que se arriscam a contradizer-se e inclusivamente a ser injustas, irrealistas e pouco práticas.
Por que ardem as nossas florestas ? Em primeiro lugar, porque as temos. Demos graças a Deus e a quem as plantou. Em segundo lugar, porque as abandonámos. Também tem o seu mérito. Significa que abandonámos a velha e dura vida rural, em que vegetámos tempo de mais, numa agricultura de sobrevivência e de penúria extrema. Lá vão os tempos, felizmente, em que era vital um molho de carqueja, uma carrada de mato, uns ramos podres na lareira…
Saudades? Sim, também eu tenho saudades dos carros de bois chiando pelas encostas verdejantes, mas não era eu quem roçava o mato, quem o carregava e descarregava, quem aguentava o suadoiro da calma, fueiro ao ombro, puxando pela soga, quem tratava do gado, quem enfiava os socos no esterco das cortes…
Não há agora quem vigie os montes! Pois não. Quem quiser embrenhe-se neles e abrigue-se num casinhoto perdido, como dantes, ordenhe as suas cabras, cave a sua horta, curta frios e gelos, cheire a fumo e suor, espie o panorama de sempre, e morra para lá, salvo seja, como um cão…
Que pretendemos, afinal? Se aspiramos a grandes meios de combate, é porque contamos com grandes incêndios. Não nos queixemos, pois, quando eles vierem. Se desejamos evitá-los a sério, dupliquemos o funcionalismo público, mais os impostos, não há outro remédio. Porque, vistas de perto, as serras são mesmo muito grandes.
Não estou metendo-me em políticas. Simplesmente, acho que devíamos esclarecer-nos a nós mesmos. Queremos conservar uma floresta selvagem, em aras de ecologia, ou reconvertê-la em actividade produtiva, am aras de economia? Ambas as coisas? Óptimo. Mas convinhamos primeiro em demarcar as respectivas zonas.
É trabalho para uma geração, pelo menos. Entretanto, o fogo terá de limpar o que não arrumamos nós, e, honra lhe seja, está cumprindo escruplusomente a sua missão. Como dizia acima, é uma consequência lógica e previsível da urbanização e da industrialização que tanto estimamos. O seu justo preço.
Mas devíamos fomentar a agricultura!... Decerto. Qual? A antiga não dá. É trabalho muito sujo, dizem os que a padeceram. Sujo e miserável, impróprio de gente civilizada. E a nova agricultura ainda está sujeita a bravo debate. Demorará e definir-se e a equilibrar-se, naturalmente.
Que proponho, então? Que se defendam do fogo, sobretudo, as casas de habitação, isto é, as vidas humanas(mas não como em certa povoação, cortando a vegetação das bermas e deixando as ervas ali, bem secas, a fazer de pólvora…): que haja paciência, pois isto vai demorar; que se olhe para a floresta de modo científico, industrial, comercial, turístico e até histórico; que se prossigam os esforços feitos nesse sentido e continuem discutindo-se estratégias de ordenação arbórea… Mas não choremos lágrimas de crocodilo pelos matagais que desprezámos e abandonámos à intempérie, como se estio e vento fossen ladrões de riquezas nacionais, aqui d`el-rei, que ninguém os mete na cadeia.
Não nego que as nossas matas constituem tesouro a não perder, mas, vejamos: até que ponto são verdadeiras riquezas? Só na medida em que efectivamente as possuírmos, as dominarmos, pudermos fazer delas o que quisermos. Se escapam ao nosso domínio, constituem meros bens potenciais, simples possibilidade de enriquecimento futuro, não bens actuais, efectivos. Para dizer de outro modo: são bens, mas ainda não são nossos.
A floresta hirsuta e bravia, mais do que uma riqueza, é um perigo. A madeira crescida e colhida à toa não é produção económica, mas uma espécie de “totolenha”. Floresta por trabalhar é couto de bichos, não de homens. Paisagem do nosso desinteresse, da nossa inércia, da nossa incúria. Que o fogo a confunda, quase apetecia exclamar…
Espero que não me leia algum pirómano. Dele não diria que o fogo o confunda, porque já lhe confundiu os miolos, coitado. E quanto a criminalidade, o que sabemos ao certo é que ela não seria possível – em tal ordem – se não fosse o estado actual das nossas matas…                                  zzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
Nota – Este longo texto é muito antigo, cerca de vinte anos, diria, e foi escrito por um sacerdote católico, monsenhor Hugo de Azevedo, que em tempos teve uma coluna semanal no Jornal de Notícias, de onde tomo a liberdade de o transcrever. É que ele é tão actual que se pode aplicar totalmente à situação desgraçada que este ano vimos atravessando…
                                          Amândio G. Martins



Sem comentários:

Enviar um comentário

Caro(a) leitor(a), o seu comentário é sempre muito bem-vindo, desde que o faça sem recorrer a insultos e/ou a ameaças. Não diga aos outros o que não gostaria que lhe dissessem. Faça comentários construtivos e merecedores de publicação. E não se esconda atrás do anonimato. Obrigado.

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.