terça-feira, 15 de setembro de 2015

NÃO VOU POR AÍ

CÂNTICO NEGRO

“Vem por aqui” dizem-me alguns com olhos doces,
Estendondo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “Vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços),
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: “Vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprio pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o longe e a miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha loucura!
Levanto-a como um facho a arder na noita escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o  diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah!, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “Vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
Não sei por onde vou,
-Sei que não vou por aí!

Poema de José Régio( poemas de Deus e do Diabo) tornado famoso por uma notável interpretação de João Vilaret.

Transcrito por Amândio G. Martins

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