terça-feira, 27 de outubro de 2015

DOUTORES DA MULA RUÇA

                                          EU, O DOUTOR
Entrei uma tarde numa camisaria de onde gastava, com o fim imaginado de comprar uma gravata. O caixeiro que estava livre de freguês, e que há muito me conhecia, cumprimentou-me alegremente: “Boa tarde, senhor doutor.”
“Não sou doutor”, disse-lhe, e era verdade. “Porque é que me julga doutor?”
“Ah, eu realmente julgava…”, respondeu ele limpidamente.
Pedi gravatas, escolhi a que preferi, paguei. Nesta altura, o outro caixeiro, que também de há muito me conhecia, veio para ao pé do colega.
“Boa tarde”, disse eu para ambos.
Os dois caixeiros inclinaram-se amáveis e sincrónicos, e, como um só, disseram:
“Boa tarde, senhor doutor, e muito obrigado”.

Moralidade:
Quando a opinião nos faz doutores, doutores temos que ser. Na vida social, somos o que os outros nos julgam, e não o que até fingidamente somos. A nossa personalidade social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada tem de nós. O estadista que saiba saber isto tem a chave do domínio do mundo. Pode, é claro, faltar-lhe a porta; isso, porém, é já destino.

NOTA – Conto de Fernando Pessoa

NOTA 2 – Este conto do Grande Senhor trouxe-me à memória o que em tempos ouvi a Jerónimo de Sousa, ao recordar o dia em que pela primeira vez entrou no Parlamento. Andavam os funcionários atarefados a indicar aos eleitos os cantos à casa, quando um deles se lhe dirige apontando: “por aqui, senhor doutor”. Perante a resposta de que não era doutor, o funcionário, imperturbável, diz: “Ah, desculpe, senhor engenheiro”…


                                        Amândio G. Martins

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