segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

MORTE EM "PRIME TIME"





Um homem morreu. Os seus celebram-no, envoltos no luto, choram o que têm a chorar – muito – vivem momentos de uma tristeza que não se descreve com palavras. Extravasam raiva, sentem-se injustiçados, impotentes. Amanhã vão continuar a viver, com uma parte a menos, um vazio que deixa uma mancha negra que não desaparece, impressa como se fosse uma tatuagem, até que as suas mortes os apaguem, quando for o momento de ser.

Tomamos conhecimento dessa morte notificados pelos jornais, estamos constantemente a sermos notificados de mortes chocantes, tão banais como a vida. Reagimos em modo tépido, partilhando comentários frouxos entre conhecidos, e esquecendo-nos rapidamente do episódio em maneirismos egoístas, enojados por um tema mais que batido.

Esse acontecimento real, para nós não o é, porque não foi connosco, foi ao lado, na distância física de um ecrã de televisão, ou de uma folha de jornal. Enquanto não é connosco, é uma coisa distante, pouco verdadeira. Mórbida é certo mas um espectáculo.

Quando as mortes são muitas e as imagens arrepiantes, é hábito solidarizarmo-nos, invocando os Direitos Humanos, querendo exorcizar a maldade do mundo, sofrendo reacções alérgicas exuberantes, e a seguir de novo esquecemos, porque ninguém aguenta estar sempre a olhar para o negro.

A verdade inconveniente é que vivemos num país que desrespeita os direitos da condição humana, que maltrata pela negligência, a omissão, o desprezo, a soberba da palavra política aldrabona, prostituta, desleixada para os outros, só preocupada com o seu bem-estar.

Quanto um alto dignitário tem uma urgência, telefona para os amigos, se não houver resposta local imediata, enchemos (desconhecendo isso) o depósito de um avião de Estado, para que se cuide lá fora.

Não há castigo para os influentes com correligionários influentes, eles pairam acima do pecado. Não há crimes de colarinho engomado, é tudo um “suponhamos”, maledicência nossa, muita inveja pelo seu sucesso.

Esses crimes – que não o são porque os políticos não cometem crimes - resolvem-se nas comissões de inquérito, que se hão de constituir, sem desfechos, arrastadas em infinidades, que trazem o esquecimento que se pretende. Ou então fazem-se novas leis, que anulam as anteriores, e assim tudo se soluciona, no mais brilhante formalismo do Estado de Direito.

Nós julgamos que estamos a pagar para ter uma equipa de neurocirurgia na principal urgência da maior cidade do País mas o dinheiro vai para os honorários generosos duma elitezinha sarnosa que se pegou à nossa pele, não havendo para já unguento que a despegue.

Os que como nós – sensíveis, logo fracos – enjoam e repelem não passam de pobres loucos, aos olhos desconfiados dos transeuntes que circulam de manhã pelas ruas, ombros descaídos, pálidos, as órbitas encovadas por uma noite de insónia, derrotados porque o árbitro roubou um penalti, ou porque ficaram acordados até tarde, esperançados de assistirem a uma cena de sexo explícito numa série televisiva que mete  vacas e bois, bácoros, e muitas galinhas.

Uma vida, no meu país, vale pouco, pouco mais que o tempo de glória em que a sua morte é anunciada em prime time.

1 comentário:

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