terça-feira, 29 de março de 2016

Quero continuar a ser filha dos meus pais


Embora evite a "transcrição", por vezes tenho que abrir uma excepção. Penso que vale a pena ler este artigo de Laurinda Alves e meditar um pouco sobre o assunto. Apesar de no meu caso pessoal já não os ter vivos, sou testemunha destas situações pois tenho os meus sogros connosco.

«A partir dos quarenta e muitos, cinquenta e poucos, todos começamos a sentir que os papéis se invertem nas famílias e caímos na conta de que mais ano, menos ano, seremos convocados a cuidar dos nossos pais. Confrontados com doenças crónicas, ou chamados de emergência depois de acidentes cardiovasculares cerebrais, quedas e até atropelamentos provocados por distração, falta de audição ou visão, damos connosco atordoados e aflitos, sem saber o que pensar. Pior, sem sabermos o que fazer. Como agir, a quem recorrer, como ajudar?

O ‘como’ é a grande questão que atravessa as nossas vidas. Saber como, é, porventura, mais importante do que saber o quê e porquê. Muitas vezes nem chegamos a perceber os ‘porquês’ do que nos acontece, mas nunca poderemos evitar os ‘como’. O problema é que a vulnerabilidade dos nossos pais – mesmo quando eles não se queixam ou tentam disfarçar! – consome-nos, para-nos e obriga-nos a repensar muita coisa. E a aprofundar este grande ‘como’, para percebermos como havemos de fazer para os ajudar a viver essa etapa de novas dependências, como podemos ficar mais próximos ou estarmos mais presentes sem termos que renunciar à nossa vida pessoal, profissional e conjugal.
Ver envelhecer os pais não é um processo fácil e embora seja natural, traz muita ambivalência ao coração. Ficamos tristes por eles e com eles, mas ao mesmo tempo temos medo que as suas dores, as suas debilidades e a sua perda de capacidades se eternizem. Sofremos porque nos sentimos muitas vezes impotentes perante o seu seu sofrimento e a sua fragilidade crescente, mas também porque o envelhecimento dos pais nos remete fatalmente para o nosso próprio envelhecimento, que é assim uma espécie de tabu individual. Uma filha não gosta de ver a imagem da degradação física da sua mãe porque mesmo sem querer pensa no seu próprio corpo dali a 20 ou 30 anos. Um filho resiste muitas vezes a cuidar do seu próprio pai, ou chega a afastar-se dele na velhice, pelas mesmas razões. Porque lhe custa lidar com a imagem avelhentada de um pai que deixa de ser forte e protector, que de alguma forma deixa de ser o seu pai-herói.

A realidade dos filhos que começam a ter que ser pais dos seus pais é tremenda e por vezes impõe-se de forma brutal. Pode chegar através de pequenos sinais como as lendárias perdas de memória ou as clássicas quedas em casa e tropeços na rua, mas também pode anunciar-se através de doenças graves que implicam tratamentos delicados ou cuidados continuados que envolvem questões sobre as quais nunca apetece falar (estou a pensar na temível incontinência, por exemplo, mas também na perda de autonomia para fazer a higiene própria ou na incapacidade de tratar da alimentação 4 vezes por dia, todos os dias, e ainda nas noites passadas em branco) e que muitos filhos maiores já sabem porque já experimentaram. Daí o pavor de muitos homens e mulheres ainda entre os quarenta e os cinquenta. Temem que estas situações se agravem e eternizem obrigando-os a adiar ou até a pôr de lado a sua realização pessoal e profissional, abdicando de uma vida que legitimamente sonharam para si mesmos e não contemplava o pesadelo de uma mãe, uma sogra, um pai ou um sogro doentes, acamados ou a precisarem de ser lavados e alimentados todos os dias.

À medida que o tempo passa e as doenças avançam percebemos que não existem pais perfeitos nem filhos ideais. Todos passamos pela experiência dos sentimentos contraditórios, pelas fases de maior nostalgia em que apetece ser apenas filho, voltar à infância (à ideia de uma infância protegida, seja ela real ou idealizada), recusar o envelhecimento, fingir que está tudo melhor do que realmente está, mas também por momentos de zanga, frustração, impaciência, raiva, confusão, alheamento e rejeição, que alternam inexplicavelmente com tempos de ternura, dedicação, amor e compaixão. Trazemos em nós tudo isto e muito mais. Dizem os especialistas que o caminho é aceitar esta mesma ambivalência tentando focar mais no amor e menos na culpa. Percebo os especialistas, pois nada é mais erosivo na relação entre pais e filhos do que os sentimentos de culpa mútuos. São erosivos e empobrecedores, aliás. Não levam a lado nenhum e fazem-nos esbarrar constantemente em muros de silêncio que rapidamente se tornam intransponíveis e nos afastam irremediavelmente uns dos outros. Os pais, porque se sentem culpados de estarem dependentes e darem tanto trabalho; os filhos por não estarem a ser capazes de cuidar, de acompanhar e mimar os pais como deviam e gostariam.

No meio de tanta vulnerabilidade e dependência também há boas notícias. As relações familiares muitas vezes fortalecem-se na adversidade. É um mistério que assim seja, mas acontece. Irmãos desavindos ou pouco próximos no dia-a-dia são capazes de largar tudo para socorrer outro irmão a braços com a realidade de um cancro terminal, uma situação de demência ou um cúmulo de debilidades dos pais. Já vi isso acontecer muitas vezes nos anos em que fiz voluntariado de cabeceira. Mas também já vivi isso com as doenças dos meus próprios pais. Somos quatro filhos vivos e temos vidas muito diferentes e muito exigentes, mas sempre que o pai ou a mãe precisam vamos a correr. Fomos e somos mais capazes de viver bem as situações más, do que de prestar atenção às fases fáceis e boas. Nessas alturas andamos todos mais absorvidos com as coisas de cada um, com as exigências da vida pessoal, profissional e familiar de cada um. Até podemos parecer distantes, mas perante a notícia de um tumor cerebral ou de uma hospitalização de emergência, criamos tacitamente turnos em que nos revezamos para tudo. Sejam banhos ou compras de supermercado, idas aos médicos e tratamentos, ou permanência à cabeceira. Nisto somos iguais a todos os irmãos e irmãs a quem já aconteceu terem um pai ou uma mãe a precisar de cuidados 24h sobre 24h.

A boa notícia é esta de nas fratrias poder haver uma lógica de entreajuda em que todos contribuem e se complementam. Entre irmãos os papéis são quase sempre diferentes e pode haver um mais púdico, outro mais capaz de dar banhos e tratar da higiene, outro que gosta de cozinhar e outro ainda que gosta de levar a passear. Há mil maneiras de exprimir os afectos pelos pais e a situação só se complica quando os filhos não se complementam, não se ajudam ou descartam o seu papel sobrecarregando um deles. Ou, claro, quando os filhos são únicos e se sentem mais impotentes.

A outra boa notícia no meio das doenças e sintomas de envelhecimento que geram dependências é poder haver um tempo reparador em família. Parece difícil, posto desta forma, mas mais uma vez falo pelo que vi e vivi. Há uma dimensão reparadora na proximidade familiar quando os pais ficam vulneráveis. Seja porque pais e filhos sentem necessidade de se perdoarem mutuamente por razões ou questões antigas, seja porque existe a chamada ‘dívida de gratidão’ que atravessa o coração dos filhos perante quem lhes deu vida e quem cuidou deles na fragilidade extrema dos primeiros tempos de vida, na verdade o tempo da doença prolongada pode ser muito reparador. Pode restaurar relações e fortalecer laços. E também pode desfazê-los para sempre, claro, se tudo isto for vivido de forma negativa ou não houver possibilidade de cuidar.

Os filhos que cuidam dos pais por amor são verdadeiros salva-vidas. Salvam da solidão, da exclusão, do abandono, do esquecimento, da indigência moral e emocional em que vivem muitos velhos. Podem sentir um enorme stress interior e a tal ambivalência de sentimentos, podem até ter pavores de que tudo vá de ‘mal em pior’, mas têm a possibilidade de se reconciliar em vida, de agradecer, de dar de volta aquilo que receberam, e até de aceitar a fragilidade, a dependência e a sua morte. Podem ser obrigados a viver tudo isto no auge das suas próprias crises existenciais, no seu tempo de balanços de vida, de crises e rupturas, de luto definitivo por uma adolescência que já não volta, mas tudo isto vale a pena se quisermos ser para sempre filhos dos nossos pais e cumprir o nosso papel até ao fim. Mesmo que temporariamente pareça que somos pais deles.


A minha experiência de cabeceira com estranhos, mas também de filha que tem os pais a morar em casa há anos, encerra e revela aquilo que Marie de Hennezel resumiu de forma maravilhosa : "Cuidar de um pai velho vai para além da relação filial. Um ser humano ao ajudar outro ser humano vulnerável aprende a ser melhor".»

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